"Vandana
Shiva alia a física quântica ao ativismo social para resistir pacificamente a
um sistema que considera ter colonizado a terra, a vida e o espírito. Conta-nos
como começou a defender a floresta, as sementes e os modos de vida e produção
locais contra o controle-e o registro de patentes feitos pelas multinacionais.
A
análise de Shiva vai mais além: remete-nos para as profundas implicações que o
sistema capitalista patriarcal tem na construção de um mundo desigual, com
consequências dramáticas, como a fome ou as alterações climáticas, que, para
Shiva, são sintomas de implosão de uma civilização que falha material e
espiritualmente. A nossa civilização, para sobreviver, terá de rever o seu
modelo de compreensão e de interação com o mundo, tendo como exemplo o
conhecimento holístico das civilizações chinesa e indiana, que, para Shiva,
sobreviveram à História essencialmente porque diferem do Ocidente na relação
que estabeleceram com a natureza."
Quando
eu me juntei ao Movimento Chipko, fundado por camponesas da minha região, que
diziam: “terão que nos matar primeiro antes de matarem as árvores”, daí a ação
de abraçar a árvore, para proteger. “As florestas dão-nos tudo”, disseram,
“dão-nos água, combustível, pasto e alimento”, já que são as florestas que
geram o adubo orgânico para as terras de cultivo. Dão-nos os nossos
medicamentos e as nossas raízes espirituais, estas são as nossas desusas-mãe. A
destruição destas florestas leva a deslizamentos de terra e a termos que
caminhar mais tempo para transportar água. Elas
conheciam perfeitamente a ciência de destruição ecológica.
Quando
aderi ao movimento a força mais poderosa parecia ser o governo, e ainda assim
apenas a nível regional, nada acima. O governo federal não interferia e não
existiam empresas de escala global. Os poderes mais influentes eram os
empreiteiros e o governo local e lidar com eles era o que exigia mais
determinação. Foi o que fizemos. Em 1981 as florestas foram protegidas e a
extração de madeira nos Grandes Himalaias foi proibida por razões ecológicas.
Não poderia ter imaginado na altura que daí 30 anos o mundo teria se tornado
comercialmente integrado e consequentemente tão espiritual e culturalmente
fragmentado como é hoje. Que seres humanos pudessem vir a ser tão brutalizados,
quer as vítimas deste sistema explorador, quer aqueles que o infligem, porque é
preciso estar-se brutalizado para que se tente acumular os recursos dos outros.
Não havia forma de prever a instbilidade política e econômica que se verifica num país atrás do outro, na Grécia, Irlanda, Espanha, Itália,
Portugal ou nos EUA, que continuam a fingir estar bem apesar da sua elevada
instabilidade. Nem a mais vívida imaginação me teria feito lá chegar.
Há 500 anos atrás os reis e as
rainhas da Europa pensaram que deviam enviar os seus mercantes aventureiros
para todo o mundo. A ascensão de uma religiosidade altamente fundamentalista
foi usada para justificar esta conquista, veja-se a bula papal de 1492... Piratas foram enviados para todo o mundo com a justificativa de “civilizar os
incivilizados”. A bula papal dizia: “ide e conquistai terras que não sejam
governadas por príncipes brancos e cristã”. Claro que só na Europa é que
haviam brancos, isto significava todo o mundo.
O
que está acontecendo hoje em dia é uma recolonização, em muitos sentidos. Assim
como na altura a colonização foi movida pela ânsia de poder, violência e
ganância, hoje é movida pelos mesmos interesses. Houve um conceito jurídico
criado na altura para justificar aquilo, a chamada terra nullius, a terra vazia. Onde quer que se fosse, se lá
existissem seres humanos, simplesmente negava-se a sua humanidade. Os
aborígenes da Austrália não eram aborígenes, os indianos não eram de fato
indianos, eram mais como cães. Nos livros da época os indianos eram
representados como tendo cabeças de cão. Porque praticávamos yoga e uma série
de outras coisas, era óbvio que não podíamos ser seres humanos normais, havia
algo muito retorcido em nós.
Hoje em dia, não só a “terra
vazia” como também a “vida vazia”, em temos de biodiversidade e recursos
naturais, estão a ser colonizados. Uma das razões pelas quais fundei o
movimento Navdanya em 1987 foi porque na época fui convidada para uma conferência
de biotecnologia sobre as novas tecnologias emergentes que visavam modificar
recursos vivos, e toda a indústria química, que agora se auto denomina
“indústria das ciências da vida”, asumiu que tinha de criar todo um novo
sistema através da criação de patentes, como detentores da vida, e para isto
teriam de investir em engenharia genética, para que pudessem dizer que eram
agora inventores e criadores de vida nova, e além disso, era preciso remover
restrições em termos de mercado, investimentos e de leis. Para isto deram forma
ao que se chamou a Ronda Uruguai do GATT, que mais tarde se tornou a
Organização Mundial do Comércio. Foram eles próprios que redigiram as leis, já
que eram simultaneamente paciente, médico e terapeuta. Definiram como problema os
agricultores guardarem as sementes.
Para mim, tendo passado toda a
minha infância com biodiversidade, com meu pai e minha mãe, e a minha juventude
como estudante na Chipko, a defender a biodiversidade, para mais tarde na vida
ouvir: “esta biodiversidade é nossa propriedade”, foi uma ideia tão obcena, tão
violenta, que foi então que decidi que era isto que iria defender, a vida na
sua diversidade, por qualquer meio que me inspirasse.
Há apenas duas formas de
reivindicar direito de propriedade sobre a vida: ou se rouba à natureza,
negando-lhe a criatividade, ou se rouba às culturas que evoluíram e descobriram
árvores como as neem, que são formidáveis para controlar pragas, ou as sementes
que os agricultores desenvolveram. A Índia tinha 200 mil variedades de arroz.
Chamamos a este processo de apropriação e neo-colonização, biopirataria.
Tínhamo-lo previsto, mas começou realmente a acontecer. Em 1984 tinha começado
uma campanha chamada: “Chega de Bophals, plante neem”, porque na Índia, numa cidade chamada Bophal, tivemos um vazamento numa fábrica de pesticidas, da Union Carbide, em 2 de dezembro. Nesta
noite o vazamento de gás matou três mil pessoas, entretanto morreram outras 30 mil
com danos tóxicos. “Mas nós não precisamos destas armas de extermínio na agricultura”,
disse, “quando temos as neem para
controlar as pragas sem qualquer outro dano”.
Dez anos depois descubro que uma
empresa chamada Grace, juntamente com o Departamento de Estado para a
agricultura dos EUA, dizia: “nós somos os inventores do neem”. Perguntei-me se a minha vó teria estado a dormir... Não
saberia a minha mãe, quando as usava em nossas roupas ou no nosso feijão-verde,
o quão maravilhosa era esta planta? E os agricultores que as usavam? Resolvi
desafiar esta patente. Organizei uma grande campanha, recolhi 100 mil
assinaturas de camponeses, praticantes de medicina tradicional e ativistas e
levei-as ao Gabinete Europeu de Patentes acompanhada por duas outras mulheres,
a líder dos Verdes na Europa e a líder do Movimento Orgânico Internacional.
Juntas desafiávamos a maior superpotência e uma das maiores empresas químicas
mundiais. Demorou onze anos, mas vencemos. Depois tivemos em 1998 o caso das
patentes do Basmati. Basmati quer dizer “rainha do aroma” e é um arroz pelo
qual o meu vale, o Vale de Dun, é muito famoso. O Basmati dehraduni
é o de maior qualidade.
Uma empresa vinda do Texas
chamada Rice Tech, adiciona-se “tech” ao nome e de repente se torna o inventor,
afirmou então ter inventado o arroz, a planta, o aroma, a forma como é cozinhado,
tudo. Enfrentamos o desafio. Neste caso lutei através do supremos Tribunal
Indiano e de um movimento nos EUA. Dissemos-lhes: “Se não revogarem esta
patente, teremos que vos rebatizar ‘Gabinete de Roubo e Pirataria dos EUA”.
Porque se chamam “Gabinete de Registro e Patentes dos EUA”. Funcionou, e eles
desistiram da maior parte do que queriam.
Pouco tempo depois descobrimos
que uma antiga variedade de trigo indiano tinha sido patenteada pela Monsanto.
Os trigos indianos têm muito pouco glúten. Muito ocidentais têm alergia ao
glúten porque o seu trigo foi tão otimizado para produção industrial que isso
levou a um aumento do nível de conteúdo de glúten, resultando em alergias. A
Monsanto pensou “Isto é um grande mercado, o dos alérgicos ao glúten, podemos vender
bolachas e tudo...” Patentearam a planta do trigo, o seu baixo conteúdo de
glúten, e a farinha, as bolachas ou qualquer outro produto feito a partir dele.
Desafiámo-los também, neste caso a patente foi revogada.
Existem atualmente outras duas
grandes fontes de casos de mega-pirataria. Uma delas é a apropriação indevida
de medicamentos indianos. Começamos a tomar nota e descobrimos nove mil
patentes relativas a tudo aquilo de usamos no nosso cotidiano. E ainda, devido
às alterações climáticas, há também o saque das culturas resistentes ao clima,
que os agricultores criaram. No Rajistão, uma região desértica, e noutras
partes da Índia, os agricultores desenvolveram culturas altamente resistentes à
seca. Agora as companhias estão a registrar patentes de tolerância à seca.
A nossa linha costeira tem
variedades de aroz com uma elevada tolerância ao sal. Quando tivemos o ciclone
Orissa nos anos 90, guardávamos estas variedades e distribuímo-las aos
agricultores para que pudessem dedicar-se de novo à agricultura. Um ciclone
traz água do mar, o que torna as terras salgadas e impróprias para o cultivo, a
menos que se tenha arrozes resistentes ao sal. Os nossos agricultores
cultivaram esse arroz e depois doaram dois caminhões de sementes às vítimas do
tsunami em Tamil Nadu, fazendo com que também estes recuperassem. E vinha agora
estas empresas afirmar que tinham inventado a tolerância ao sal.
Temos arrozes lindos que crescem
mais de cinco metros nas terras de aluvião do Ganges. Tolerâncias às cheias é
outra coisa que estão a patentear. Culturas resistentes ao clima são invenções
sua como se fossem produto da engenharia genética, quando na verdade são
produto da pirataria, uma forma usual de comunicação...
O padrão de crescimento, que está
definido como crescimento, para criar a acumulação de capital típica dos nossos
tempos, fracassou nos países que o criaram.
Não seria muito inteligente imaginar que um modelo que falhou nos países
onde nasceu tivesse de repente sucesso em países para onde foi transportado, em
termos de sustentabilidade. Sim, durante alguns anos, num mundo altamente
instável, veremos que enquanto o Ocidente sofre um declínio econômico, veja-se
a agora a Europa a implorar a China que salve o Euro, haverá países como a
China que por terem um enorme excedente comercial, desempenharão um papel de
potência econômica e financeira internacional.
Neste sentido, a distribuição desigual
de poder entre Norte e Sul, ou entre o Ocidente e Oriente alterar-se-á um
pouco. Mas porque o modelo é intrinsecamente injusto e insustentável, estes
países, a China e a Índia, através da sobre-exploração dos seus recursos e a
marginalização maciça da sua população, criarão instabilidade a nível
ambiental, econômico e político, internamente. Já estamos a ver sinais disso. A Índia e a China são agora internacionalmente
mais importantes como parte do G20 ou dos B.R.I.C.K., mas no entanto,
internamente, há milhares de revoltas. Na China há 100 mil manifestações por
causa da terra, todos os anos. Na Índia há um número semelhante. Um terço da
Índia não é governada pelo estado e ascensão, e essas áreas estão em expansão
porque o processo pelo qual se criou este crescimento é tão injusto que as
pessoas estão a se revoltar.
Há um ponto para além do qual as
forças armadas não conseguem controlar a rebelião, e para além do qual um
crescimento artificial de 9% não consegue trazer de volta os nossos rios e a
nossa comida. Se olharmos para a Índia de hoje
vemos uma elevada taxa de crescimento mas uma capital de fome. Um em
cada quatro indianos passa fome, uma em cada duas crianças indianas é
desperdiçada... O que significa que metade do futuro da Índia já foi apagado. A
nossa água e terra estão a desaparecer, a própria base de sustentação que
conservou estas civilizações. E a índia e a China são duas das mais duradouras
civilizações mundiais. As outras civilizações históricas desapareceram.
Sobrevivemos porque respeitávamos a terra, usávamos pouco e sabíamos conceber
uma vida feliz sem que isso passasse pela exploração da terra. Agora pedem-nos
para pagar a conta ambiental, e isto está sendo um enorme fardo para os
recursos e a população indiana, e esse crescimento é do meu ponto de vista um
crescimento negativo, se olharmos para o que as pessoas e a Natureza perderam.
O que são afinal as alterações
climáticas senão a autodestruição da civilização? O que é a extinção das
espécies, o esgotamento da água ou a poluição tóxica, senão autodestruição?
Está acontecendo diante dos nossos olhos. No que diz respeito ao conforto
material, estas afirmações de que produzimos mais comida através dos
agroquímicos tóxicos ou que usaremos a engenharia genética para produzir mais
comida, mas o que é este fato? Temos milhões de pessoas esfomeadas e dois
milhões de obesos. Uma pessoa obesa não se sente confortável. Uma pessoa com
fome não se sente confortável. Olhem-se para o número dos sem abrigo. Nem uma
sociedade do mundo alguma vez teve pessoas sem abrigo. Recolhia-se palha, umas
canas de bambu, talvez umas pedras e tinha-se uma cabana. Veja-se o número de
pessoas da América, nas ruas da Índia. Tudo o que proclamou criar habitação,
criou-se sem abrigo, o que iria proporcionar comida criou fome, o que ia criar
emprego criou desemprego. É um fracasso material que, claro, é também um
fracasso espiritual.
Esta incapacidade de pensar a
nossa evolução espiritual, que nos leva a uma concepção de crescimento limitada
destinada ao fracasso, deve-se a duas coisas: uma baseia-se na ganância, a
ganância daqueles que a promoveram e a ganância desencadeada naqueles que
consomem. A sociedade de consumo é necessária para nos impingirem todos estes
produtos inúteis, esta cultura tóxica de plástico. As pessoas pensam que vivem
melhor porque têm três vestidos manhosos ou cinco sapatos péssimos que se
estragam em cinco dias comparados com os sapatos resistentes que um bom
sapateiro pode fazer e que vão durar dez anos. Ou estes sáris cosidos á mão que
são intemporais, alguns eram da minha mãe. Nunca saem de moda, nunca perdem a
cor. É preciso estar na moda. Se é roxo este ano, como é que se pode vestir
laranja?
Esta obsolescência nos é incutida
até na forma como pensamos. Nos tornamos em consumidores estúpidos ao fazermos
parte disto. É assim que a sociedade consegue anestesiar a nossa dimensão
espiritual. A segunda é que a globalização transformou a ganância e a
competição em credos. A competição está inscrita nas regras da Organização
Mundial do Comércio e a ganância está inscrita nos mecanismos com que se lucra
a qualquer custo, que é a razão de ser das grandes empresas. Põe-se as
corporações e a sua lógica lá em cima, a humanidade cá em baixo, e
transforma-se o lucro e a ganância em valores mais elevados do que a partilha,
a proteção, a evolução e o crescimento espiritual, individual e coletivo.
Significa que basicamente criamos
seres humanos truncados. Seres humanos truncados que não são felizes,
deprimidos. Olha-se para a quantidade de Prozac necessária para manter esta “economia
em alto crescimento” a funcionar. Vamos ter simplesmente de encontrar outros
caminhos...
Se olharmos para o mundo de hoje,
o que vemos é uma tendência recente, com umas poucas centenas de anos, para o
mundo ser moldado de acordo com um projeto masculino. De uma forma muito
consciente o conhecimento foi definido como masculino por pessoas como Francis
Bacon. A economia foi redefinida em termos de bens transacionáveis, e a partir
das quais se pode obter lucro. Cozinhar para os filhos, ir buscar água, cuidar
de um pai idoso, isso não é trabalho, não é produtivo, não contribui para a
economia.
É quando se compara o que se
precisa e se vende o que se produz, que há crescimento. Por um lado tem-se na
ciência uma forma dominante de conhecimento que é muito mecanicista e redutora.
Por outro, na economia há esta ideia que a produção começa e acaba no mercado,
o que apagou totalmente a inteligência da Natureza e a sua enorme força
criadora, na polinização, na gestão do ciclo hidrológico, na renovação da
fertilidade do solo.
Para onde quer que olhemos há
tanto acontecimento, abelhas zumbem, a água circula e uma gota que se evapora do
Oceano Índico pode ir cair em Portugal. Toda esta enorme criatividade,
produção, reprodução e regeneração, foi apagada. Quanto às mulheres, que são a
maior força laboral e produtiva do planeta, as que mais cuidam dos outros, de
repente o seu trabalho deixou de ser trabalho, agora as mulheres não trabalham.
As mulheres podem contribuir para a resolução das múltiplas crises que
enfrentamos, fruto deste pensamento mecanicista e deste sistema econômico
altamente alienado e artificial, que começou por tornar o capital real e a
realidade ilusória, que concedeu personalidade às empresas e transformou
pessoas reais em não-pessoas.
Esse processo está agora
atingindo a maturidade e o colapso econômico que vemos à nossa volta é
resultado disso. Colapso ecológico, catástrofes climáticas, extinção de
espécies, entre 200 e 300 espécies desaparecem por dia. O próprio homem
tornou-se a maior força neste planeta, mas neste modo capitalista e patriarcal,
transformou-se numa força destrutiva.
As mulheres querem ser uma força,
mas uma força criativa, pacífica e não-violenta. o que elas trazem são outras
formas de conhecer que foram subjugadas, formas ecológicas, holísticas,
relacionais, um tipo de conhecimento que agora está sendo validado pelo melhor
da ciência. Todo o trabalho que desenvolvi em mecânica quântica, quando ainda
trabalhava como física, era sobre não-localidade, não-separabilidade, pois não
se pode cortar o mundo aos bocados. Todo o trabalho que as mulheres fizeram
numa economia de cuidado terá agora de se tornar realidade. Ou se tem 80% de
desemprego sob uma economia centrada nas finanças e nas corporações, ou se diz:
não, isso não é economia! Economia é preservar a vida na Terra, é proteger
todas as espécies do Planeta.
Protegemos os recursos que esta terra
generosa nos continua a oferecer desde que nos vejamos como parte dela. Acima de
tudo, precisamos de uma economia de cooperação entre as pessoas. Esta competição
está nos matando, e ela provém desta forma militarizada, masculinizada de
pensar que tem sido uma distorção do sentido que damos ao ser-se humano. A violência
não é um indicador de humanidade, mas de desumanidade. A ganância e a
acumulação de bens não são medida da nossa humanidade, a partilha e o cuidar é
que o são! Esses são os valores
que as mulheres trazem para formar o mundo determinado apenas pela convergência
do patriarcado com o capitalismo.
Uma das coisas que tenho
aprendido é a dispender muita energia a trabalhar com pessoas, com sua bondade,
a criar solidariedade. E, claro, o milagre diário da vida a desenrolar-se. Vida
em que se pisa a relva e ela se ergue de novo, em que se planta uma semente e
ela germina. Esse milagre e a beleza que trazem consigo, são para mim uma
inspiração poderosa. A beleza nas pessoas, na cara enrugada da camponesa que
tem orgulho na sua floresta, na sua água, na sua semente, que tem a
determinação de dizer: “Esta é a minha vida e não vou desistir”.
É através da minha capacidade de
análise que tenho consciência da gravidade da situação. Como costumo dizer,
dado que tenho uma educação em inglês e estudos em física, sei falar ingês, a
língua dominante, e sei como fazer contas, outra linguagem de domínio. Portanto
não sou dominada, sou capaz de lidar com as mentiras, sei que 2 + 2 são 4 e não
20, e quando a Monsanto diz que são, sei como lidar com eles. Também não me
levo demasiado a sério, sei que sou uma pequena partícula e que é meu dever
fazer certas coisas. Como diz o Bhagavad Gita, o nosso belíssimo texto: “Tens de
fazer o que é certo, mas não te cabe a ti determinar o desfecho”. Esse desapego
comprometido, essa capacidade de nos entregarmos apaixonadamente a um assunto e
ao mesmo tempo de nos distanciarmos do resultado tem me ajudado a lidar com
algumas das mais agressivas forças dos nossos tempos. Os meus pais me ensinaram
a nunca temer. Diziam-me: “Segue a tua consciência e nunca terás de ter medo.”
Olho para o futuro, e olho da
minha perspectiva quântica, com grande incerteza. Existem duas possibilidades. A
possibilidade de continuarmos no caminho onde estamos, com cientistas doidos
querendo fazer geo-engenharia, que primeiro estragam o planeta com alterações
climáticas e que depois dizem “Nós tratamos disto”.
A apropriação de recursos e território que
isso acarreta poderá levar-nos rapidamente á extinção. Neste caso estou certa
que a Terra prosseguirá o seu curso. Enquanto espécie podemos desaparecer, mas
como na Índia acreditamos na reencarnação, a extinção da espécie humana não
será o final da vida. Somos uma unidade, os vermes e os micróbios e tudo o
resto, são um de nós.
A segunda possibilidade é a de que se opere
uma mudança rápida na nossa consciência, uma mudança rápida de quem somos. Seria
um salto apoiado pela maioria, porque a maioria das mulheres não acredita neste
saque e nem sequer tem a oportunidade de o levar a cabo. A maior parte dos 95%
a quem foram retirados direitos estão formando um novo mundo, e querem um outro
mundo, querem paz, partilha, outras formas de organização política e econômica.
Essa deslocação tectônica está
acontecendo debaixo das estruturas de poder, agitando a base. Quando mudança
ocorrer, podemos vir a estar muito rapidamente numa situação muito diferente
como espécie.
A nossa época tem sido designada
como a era do Antropoceno, em que a humanidade tem sido uma força destrutiva do
planeta. O clima é determinado pelas nossas ações, a sobrevivência das
espécies, a água, a fertilidade dos solos são determinados pelas nossas ações. Se
continuarmos por aí, não sobreviveremos. A alternativa é mudarmos para o
Antropoceno criativo, movido por uma energia feminina, pela energia das civilizações
não-ocidentais, e da sua espiritualidade, a energia dos povos indígenas, da
própria Terra e da sua diversidade. É basicamente reconhecermos que somos parte
da vida e que podemos continuar a ter futuro se reconhecermos o simples fato de
que não somos donos, conquistadores ou senhores da Terra, mas parte da terra.
Vandana Shiva – Realização: Graça Castanheira – Assistente de
realização: Levi Martins – Popfilmes 2012. Para asistir o Documentário AQUI.
Transcrição: Sergio Bucco
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